Esta é a quarta onda de IA (inteligência artificial) que o pesquisador francês Charles Fadel, fundador do CCR (Centro para Redesenho Curricular, na sigla em inglês), da Universidade de Harvard (EUA), acompanha. Fadel acredita que a tecnologia tem o potencial de reduzir desigualdades educacionais, mas também de ampliá-las, caso o acesso não seja equitativo.
Na última semana, ele esteve em São Paulo (SP) para o lançamento do livro “Educação na Era da Inteligência Artificial”, que inclui artigos de outros pesquisadores do CCR, como Alexis Black, Robbie Taylor, Janet Slesinski e Katie Dunn. Publicado em português pela parceria entre Fundação Telefônica Vivo e Instituto Península, o livro explora a evolução da IA e sua relação com a educação formal e a aprendizagem ao longo da vida. A versão digital está disponível gratuitamente no site da Fundação Santillana (clique para acessar a página de download).
Nesta nova onda, ele defende que o uso da IA deve ser acompanhado de políticas que garantam igualdade no acesso e na capacidade de uso, ou seja, que o investimento seja feito em programas de formação docente. Como grandes decisões educacionais dependem de várias frentes, ensinar e aprender na era da IA também passa pela modernização do currículo escolar, com a introdução de disciplinas como tecnologia e engenharia desde cedo, preparando os alunos para um mundo em constante transformação. E não se trata de fazer novas perguntas. Para Fadel, a educação deve priorizar o desenvolvimento de habilidades como adaptabilidade e aprendizagem autodirigida, essenciais em uma era de rápidas mudanças.
Mesmo otimista, o pesquisador também vê ciclos de exagero em torno da IA, observando que, embora seu potencial seja significativo, ela deve ser considerada como uma ferramenta que complementa o trabalho dos professores, e não como uma simples substituta. Neste cenário, professores devem ser capacitados para usar a IA de forma eficiente, sem precisar programá-la, além de encorajados à experimentação para superar medos relacionados à tecnologia. O papel dos educadores continua essencial, especialmente na integração dessas novas tecnologias ao ambiente de aprendizado.
Além das implicações tecnológicas, Fadel aborda as considerações éticas associadas ao uso da IA na educação, particularmente no apoio ao bem-estar dos alunos. Ele acredita que a IA pode ajudar a detectar e sugerir intervenções, mas defende que o julgamento humano deve prevalecer.
Leia abaixo os destaques da entrevista de Charles Fadel realizada na Camino School, em São Paulo (SP).
Porvir – Minha primeira pergunta é sobre a nova onda tecnológica. No passado, tanto estudantes quanto professores ficaram para trás, aqui no Brasil e no mundo. Você acha que a IA pode resolver essa exclusão digital ou ampliá-la? Você está mais otimista ou pessimista sobre seu impacto? Charles Fadel – Ambos. E esse é o problema. A IA mostrou que pode fechar a lacuna. Por exemplo, houve um experimento na Harvard Business School com consultores que os 50% consultores mais bem capacitados que usaram IA melhoraram apenas 17%, enquanto os 50% piores melhoraram 43%. Portanto, a metade inferior melhorou muito mais, e a metade superior já era muito boa, por isso havia menos espaço para essa melhoria. É uma situação de retornos decrescentes. Essa é a parte boa da IA. Mas isso significa que você precisa ter acesso a ela e saber como utilizá-la. Se não tiver, claro, ficará para trás. Mas isso é uma questão social, não uma questão tecnológica. Nem mesmo uma questão educacional.
E esse é o problema, pois colocamos nas costas da educação a tarefa de tentar resolver todos os problemas sociais do planeta, quando, na verdade, podem ser outros fatores, como a redistribuição de renda, por exemplo.. A tecnologia apenas amplifica o que os humanos fazem, tanto de bom quanto de ruim.
Porvir – No livro, você descreve a progressão de dados para conhecimento e depois para sabedoria. Como ocorre essa transformação? É papel apenas da escola ou envolve a educação como um todo? Charles Fadel – É para a educação como um todo. É o ideal supremo de uma educação. Mas o que descrevo no livro é que pensamos na sabedoria como algo muito etéreo e impreciso. Na realidade, a sabedoria se baseia em muito conhecimento e em várias competências associadas a esse conhecimento, como habilidades e qualidades de caráter. Tudo isso pode ser ensinado. A única coisa que não se pode fazer facilmente é comprimir uma vida inteira de experiências. No entanto, você pode proporcionar experiências por meio de diferentes mecanismos. Por exemplo, nem todo mundo vai visitar um campo de refugiados. Mas, com óculos de realidade virtual, é possível. Não será exatamente a mesma coisa.
Porvir – O que na vida real seria ainda mais intenso… Charles Fadel – Exatamente. Na vida real, sim. Mas, pelo menos, isso proporcionará uma ideia melhor do que apenas ler um texto e tentar imaginar. Dessa forma, é possível acelerar algumas dessas experiências. No entanto, no final das contas, nada substitui o acúmulo de experiências de vida. Infelizmente, em muitos países ocidentais, não valorizamos essas experiências. Assim que alguém envelhece, é empurrado para o lado, enquanto, em outras sociedades, quanto mais velho, mais respeitado é. E isso acontece porque as pessoas confundem alfabetização digital com sabedoria. Só porque alguém não sabe usar, sei lá, óculos de realidade virtual, não significa que essa pessoa está obsoleta em relação à sua experiência de vida. E cada geração pensa que inventou tudo sozinha. Sabemos disso. Por exemplo, eu já passei por quatro ciclos de IA na minha carreira. E, quando vejo isso agora, penso: “Ok, já vi isso antes”. Toda vez as pessoas dizem: “Ah, desta vez é diferente…”. Ok!
Porvir – Para fins de marketing? Charles Fadel – Para fins de marketing, para arrecadar mais dinheiro. Quando você precisa levantar US$ 10 bilhões (R$ 55 bilhões) de investimento (caso da Openai, empresa responsável pelo ChatGPT), precisa dizer que é diferente. Mas as pessoas se confundem e começam a acreditar nisso porque, do contrário, a dissonância cognitiva é muito difícil de lidar. Sam Altman (presidente-executivo da Openai) provavelmente acredita no que ele diz, mesmo que seja para marketing.
Isso não significa que a situação atual não seja muito poderosa, e é aí que as pessoas se confundem, pois dizem: “Ah, não pode fazer tudo como um humano, então não importa”. Não, é extremamente poderoso. O sistema pode ser especialista em várias coisas, muito mais do que a maioria dos humanos. Precisa ser aproveitado e, ao mesmo tempo, temos que lembrar que teremos capacidades incrivelmente mais fortes nos próximos 20 a 30 anos.
Você, talvez eu, viveremos em algum momento essa fase de AGI (sigla em inglês para inteligência artificial geral, capacidade hipotética de um agente inteligente de compreender ou aprender qualquer tarefa intelectual que um ser humano possa). E o que precisamos desenvolver em termos de educação? Adaptabilidade e aprendizado autodirigido. Essa é a base. Esse é o coração de tudo o que a educação deveria ser, e não fazemos isso de forma alguma na educação tradicional.
Porvir – E com essa geração de IA, como você enxerga a necessidade de redesenhar as disciplinas escolares? Charles Fadel – As disciplinas tradicionais que ensinamos remontam literalmente à Idade Média e aos gregos. E, nos últimos 100 a 200 anos, fizemos muito progresso em novos ramos de disciplinas existentes. Por exemplo, em matemática, avançamos muito em estatística, probabilidade e matemática e computacional. Mas essas disciplinas não são ensinadas porque o conteúdo antigo ocupa todo o tempo. Entendemos muito melhor o ser humano por meio da psicologia, sociologia e antropologia. Mas isso não é ensinado, pelo menos não como disciplina obrigatória, porque ocupa todo o tempo.
No empreendedorismo, quando ensinamos negócios, é como uma escola de negócios clássica, com contabilidade e outras coisas. Não ensinamos empreendedorismo, etc. Precisamos modernizar as disciplinas existentes, mas também precisamos criar tempo e espaço para disciplinas modernas, como tecnologia e engenharia. Chamamos isso de STEM. Não ensinamos o T, de tecnologia, e o E, de engenharia, apenas ensinamos matemática e ciências. Não ensinamos nanotecnologia, biotecnologia, engenharia civil, mecânica e elétrica. Tudo isso é deixado apenas para a faculdade. Mas, na verdade, são bastante fáceis de ensinar até mesmo para uma criança de 5 anos. Você pode ensiná-las a construir uma ponte que não desmorone. Não é ciência de foguetes.
Porvir – Mas você acha que isso acontece porque as escolas são conservadoras? Charles Fadel – São os governos, os currículos, os referenciais governamentais, como a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e coisas desse tipo, que estão olhando para o retrovisor. E o problema é que todas essas legislações olham umas para as outras. Cingapura olha para a Finlândia, que olha para a Letônia, etc. Todos se olham, pensando: “Ah, ninguém está fazendo essa nova coisa e eu também não deveria”. Todos estão apenas observando o que os outros estão fazendo. E, como isso não está nos referenciais nem nas avaliações, nada é feito.
Porvir – Eles estão preocupados com o passado? Charles Fadel – Com os anos 1980. E eles não percebem que já se passaram 40 anos. E, mesmo quando a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) olha para a educação ao redor do mundo, eles apenas comparam o que as pessoas estão fazendo agora, mas não se preocupam com o que deveria ser feito no futuro.
Porvir – No livro, você afirma que é importante engajar os educadores, pois são tão importantes quanto especialistas e governos. O que precisamos fazer para incluí-los nessa conversa sobre inteligência artificial? Charles Fadel – Agora você me fez uma pergunta sobre o “como”. Você mudou do “o que” estamos ensinando para o “como”. E essa é uma distinção que eu faço constantemente, porque é muito fácil voltar ao “como”. Quando falamos sobre como obter as opiniões dos professores, é necessário entender a realidade deles na sala de aula. Mas eu não pediria aos professores que opinassem sobre o “o que” deveríamos estar ensinando, porque eles não têm essa visão. Eles não têm ideia de como isso é usado no mundo real.
O problema é que contratamos acadêmicos, que também não têm ideia de como isso é usado no mundo real. Quando eles ensinam matemática, ensinam matemática grega, e não matemática moderna. E isso é válido para todas as disciplinas. No que se refere ao “o que”, estamos presos na academia, em vez de sermos usuários das disciplinas.
Quando se trata de IA, a analogia é mais com os motores de busca. Os professores tiveram que descobrir como usar motores de busca. Eles precisam descobrir como usar IA. Há milhões de experimentos acontecendo ao redor do mundo. Eventualmente, as pessoas encontrarão bons e maus modos de usá-la. Há muitos livros e artigos sendo publicados. Em dois anos, acho que você não me fará mais essa pergunta, porque todos terão se adaptado a essa nova onda. No momento, todos estão apavorados.
Mas é como qualquer coisa nova, você tem que aprender. O problema, claro, é que muitos professores ou não têm acesso ou têm medo da tecnologia e não querem experimentar. E o ponto é: vá experimentar.
Saiba mais em: https://revistaeducacao.com.br/2024/09/04/avaliacao-escolar/
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